domingo, 31 de março de 2019

Ditadura: Generais envolvidos em Grilagem de Terras


   No início de novembro de 1971, o jornal Folha de São Miguel estampou na primeira página: “Generais da Reserva que se fizeram Grileiros em Itaquaquecetuba mandaram matar cabo da base aerea[1]. O jornal fazia graves acusações contra figuras graduadas do Exército, em pleno governo do general ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), período marcado pela perseguição intransigente aos opositores do regime, por meio de prisões, torturas e assassinatos.

   O jornal denunciava o processo de invasão de terras por meios ilegais (grilagem, cujo termo jurídico é esbulho possessório) e o assassinato do cabo da Aeronáutica Luiz Carlos Pereira, que servia na Base Aérea de Cumbica (Guarulhos); ambos envolvendo os generais.

   Ione Benedita Pereira era dona de uma chácara na Estrada São Paulo - Rio de Janeiro, nas proximidades do Rancho Grande, em Itaquaquecetuba, herdada de seu pai há mais de trinta anos, comprada por escritura. Em fevereiro de 1971, a chácara foi invadida por ordem de René Bonadie, que colocou placas com os dizeres “Terreno Penhorado no Executivo Hipotecário da 5º Vara Cível - Estado da Guanabara -  sob responsabilidade dos Depositários Judiciais Coronel José Paulini, General Silvio Corrêa Andrade, General Aldévio Barbosa Lemos – viaduto nove de julho, 181, 12º andar”. Várias destas placas foram colocadas no município. René Bonadies apresentava-se como Auxiliar do Depositário Judiciário, no caso, o coronel e os generais, vez por outra como advogado.

   Desde maio de 1971, Ione e Luiz Carlos tentavam retomar o imóvel. Combinou-se a devolução, e no dia 26 de setembro de 1971, Ione, seu filho Luiz Carlos e a noiva, seu compadre, a esposa e filhos foram de caminhão até o sítio, onde encontraram os invasores colocados por René Bonadie. Os três invasores armados, disseram cumprir ordens do doutor René, impedindo a entrada. Ione e Luiz Carlos exigiram a presença de René. Os homens saíram num fusca. Enquanto esperavam, retiraram uma placa. Os homens retornaram e José Martins atirou duas vezes. O cabo Luiz Carlos Pereira levou um tiro, foi socorrido, mas não resistiu aos ferimentos e faleceu. Sua mãe levou um tiro no joelho, ficando aleijada da perna esquerda.


   O Banco Evolucionista obteve, em fins do século XIX, concessão para o estabelecimento de Burgos Rurais na região da Zona Leste da capital, nas margens do rio Tietê. O banco faliu e o empreendimento não foi executado. Mas, ao longo do tempo apareceram os credores de supostas dívidas, que por sua vez foram repassando ou vendendo para outros, que por meio de várias ações na justiça, tornaram-se “depositários hipotecários” sobre a concessão considerada, há muito anos, expirada. Vários expedientes foram adotados: falsificação de escritura, expulsão de posseiros e proprietários, alteração de mapas da concessão (chegando até Mogi das Cruzes), ameaças e assassinatos.

   Em Itaquaquecetuba, as terras entre o Monte Belo e o Rancho Grande foram, na Estrada São Paulo – Rio de Janeiro, os alvos principais. Abaixo, transcrevemos partes da ficha policial, do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS), de Rene Bonadie:



BONADIE - RENE

ASSUNTO - Em 8.3.73, foi indiciado em inquérito policial (inquérito 9/73) por esbulho possessório em várias áreas do município de Itaquaquecetuba que veio culminar com a morte de LUIZ CARLOS PEREIRA e ferimento graves em IONE BENEDITO PEREIRA.



ASSUNTO - Em 3.4.73 foi indiciado em inquérito policial, juntamente com JOSÉ MARTINS, autor do homicídio de que foi vitima LUIZ CARLOS PEREIRA e na mesma ocasião de lesões graves em IONE BENEDITO PEREIRA



ASSUNTO:- Informe nº 115-DIS-4, de 15-09-72- do Ministério da Aeronáutica, comunica que o fichado supra e JOÃO SIMÕES e seu filho, RENATO XAVIER SIMÕES, estariam praticando "GRILAGEM" em alta escala, em áreas de: Itaquaquecetuba, Suzano, Poá, São Miguel, e Via Anhanguéra. Recorrendo ao uso efetivo de pistoleiro profissional e de militares do Exército, reformado. Citado como envolvido: General R/R Silvio Corrêa de Andrade, General Aldevio Barbosa Lemos e Coronel José Paulino, os quais agiriam em favor do grupo Delfim Verde do citado João Simões. O outro General: Morenci de Couto e Silva, pertencia ao grupo Moacir Ferreira de Andrade. Os grupos grileiros antagônicos teriam já, através de seus pistoleiros, a posse efetiva de terras nas áreas citadas. Relatado que Fernando Nobre, proprietário, evitou a posse violenta de suas, por parte de RENE, mediante contratação de pistoleiros Com referência a RENE, consta ainda que o BANCO EVOLUCIONISTA, quando impedido por decisão do SUPREMO TRIBUNAL vendeu 257.000 MM de terras litigiosas ao Grupo Delfin Verde.

BONADIE RENE

ASSUNTO - Informe 54 de 26.4.73 do II EX E/2 sobre Posse Ilegal de Propriedade arquivado na pasta de Inquérito e Sindicância. Inquérito 11/73 em que foi indiciado SILVIO CORREA DE ANDRADE e ALDEVIO BARBOSA e outros.

Pasta 54 - Documento nº1

Em 20.3.73 foi detido para averiguações
Em 29.3.73 foi colocado em liberdade.

Cláudio Sousa
Bibliografia:
Arquivo Público do Estado de São Paulo - DEOPS:
- Prontuário Rene Bonadie
- Ficha Rene Bonadie
- Prontuário José Martins A 


[1] Folha de São Miguel, nº 177, ano IV, São Paulo, 1 a 15/11/1971

sexta-feira, 15 de março de 2019

O Hospital Psiquiátrico de Itaquaquecetuba


  O Ministério da Saúde divulgou uma nota técnica no dia 6/02/2019 propondo alterações nas políticas nacionais de saúde mental e de drogas. Os especialistas na área reagiram e lembraram da luta antimanicomial, que existe no Brasil há mais de 30 anos, que procurou combater as violações de direitos humanos nos hospitais psiquiátricos denunciadas na década de 1970. Tais práticas incluíam a internação por tempo indeterminado em manicômios, camisa de força, convulsoterapia (aplicação de choques elétricos), entre outros.



   Em Itaquaquecetuba durante 20 anos funcionou um hospital psiquiátrico que recebia pacientes do Alto Tietê. O Instituto Modelo de Itaquaquecetuba Ltda (IMIL), não começou como hospital psiquiátrico.  Em novembro de 1974, atendia 138 pacientes de surto de meningite que assolou a capital[1]. O hospital foi fechado entre 1993 e 1995.




   O jornal Folha de São Paulo estampou na primeira página da segunda-feira, dia 18 de julho de 1977: “Rebelião no hospital psiquiátrico”, com uma fotografia do refeitório destruído, com mesas e cadeiras reviradas. O hospital atendia “doentes portadores de distúrbios mentais, sendo 200 homens em convênio com o INPS e 150 mulheres, estas mantidas pelo governo do Estado”. O IMIL era uma instituição particular majoritariamente financiada com recursos públicos. O recurso federal vinha do INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), que depois foi transformando no INSS (Instituto Nacional de Seguridade Social).

    "Hospital é acusado de espancar doente" foi o título de uma reportagem, de 02 de janeiro de 1984, da Folha de São Paulo: "A família de Reinaldo Satô, um doente mental internado desde o dia 8 de dezembro no Instituto Modelo de Itaquaquecetuba, está acusando um funcionário do hospital de ter espancado o rapaz. Segundo a família, no dia de visitas, quinta-feira passada, Reinaldo queixava-se de fortes dores no abdômen. Outro paciente, Arlindo Cândido da Silva, que teve alta nos últimos dias, disse ter visto o atendente de enfermagem Gérson Pilate agredir Reinaldo e outros dois pacientes". (Folha de São Paulo [Internet]. Acervo folha [cited 2017 Aug 20]. Available from: http://acervo.folha.com.br)



   Lembro que em 1982, meu pai pretendia comprar um terreno no loteamento Jardim Califórnia. O local era um grande descampado, com ruas de terra e estacas demarcando os lotes. Havia poucas construções iniciadas. O que chamava a atenção era um grande muro em um dos lados do loteamento. Trava-se do muro do “Hospital dos Loucos”, como se dizia na época.
Antiga portaria do IMIL - Google street 2017
 Entre os moradores de Itaquaquecetuba a expressão “mandar para o 40”, tinha o sentido pejorativo, de que a pessoa injuriada devia ser internada no hospital psiquiátrico, por ter problemas mentais. O hospital estava localizado na Estrada do Perobal, que ligava a via Dutra com o quilómetro 40 da Estrada de Santa Isabel. Uma linha de ônibus que existe desde a década de 1980 é denominada Hospital, que serve aos bairros Jardim América e Jardim Califórnia, vizinhos do IMIL.

Cláudio Sousa





[1] Folha de São Paulo, 9/11/1974, p. 11.