quinta-feira, 14 de março de 2024

Operação Castelinho (2002): ônibus partiu de Itaquaquecetuba

 O Primeiro Comando da Capital (PCC), fundado em 1993 por presos recolhidos na Casa de Custódia de Taubaté, tinha um estatuto, documento com as regras que deviam ser seguidas por seus integrantes, que incluía a condenação à morte. O estatuto colocava a necessidade de união e organização para evitar a ocorrência de um novo massacre. Logo, a facção se espalhou e passou a controlar os presídios de São Paulo.

A Polícia Militar criou, em 2001, um grupo chamado de Gradi (Grupo de Repressão e Análise aos Delitos de Intolerância), apesar do nome, na prática procuravam aliciar presos para a tarefa de informantes dentro do sistema penitenciário e infiltração, em troca de benefícios.

“Segundo o jornal Folha de S. Paulo, de 28 de julho de 2002, surgiu dentro da Polícia Militar um grupo de justiceiros, conforme escreveram os jornalistas Alessandro Silva e Gilmar Penteado. Eles passaram a recrutar presos condenados para se infiltrarem no PCC e, a partir do que eles lhes passavam, executavam as ações. A reportagem associava esse grupo ao antigo Esquadrão da Morte (um instrumento da época da repressão, cujo objetivo era simplesmente a execução de presos e pessoas que interessavam). [...]

O que se fazia era retirar o preso da prisão e ordenar a ele, em troca de benefícios, que provocassem uma ação criminosa para atrair membros do PCC que estivessem fora do âmbito do sistema prisional. A questão é que nenhum desses presos sobrevivia, todos que foram levados até essas ações invariavelmente morriam em confronto com os policiais.” (Christino e Tognolli, 2017)

A maior e a mais letal ação do Gradi ocorreu em 5 de março de 2002. É narrada no livro ‘Laços de sangue: a história secreta do PCC’ (2017), de autoria de Marcio Sergio Christino e Claudio Tognolli:

Em 25 de fevereiro de 2002, os detentos conhecidos como Marcos e Gilmar foram soltos por ordem judicial, como os outros anteriormente, para efetuar a diligência com dois policiais militares disfarçados. Novamente contataram membros do PCC, mas, dessa vez, não era um resgate ou compra de armas que supostamente fariam. A ideia era realizar um roubo contra um avião que transportaria malotes de dinheiro, um “avião pagador”. A informação que tinham era de que esse avião levaria cerca de R$ 28 milhões em notas e pousaria num aeroporto de Sorocaba.

Marcaram uma reunião em um shopping e foi decidido que haveria uma checagem do local previamente, realizada por um grupo composto pelos policiais disfarçados, três integrantes do PCC e os dois infiltrados.

De fato, o grupo realizou a inspeção do local e da vizinhança. Fizeram o mapeamento, traçaram a rota de fuga e todo o planejamento, levando-se em conta, inclusive, o número de pessoas que poderiam estar presentes na escolta do tal avião. Usariam duas pickups e um ônibus para transportar o grupo todo − no fim chamaram mais integrantes da facção para ajudar.

Os policiais militares foram à frente do pequeno comboio dirigindo uma Parati. Oito homens do PCC ocupavam o ônibus que estampava o prefixo 157 − número do artigo do Código Penal que faz referência ao crime de roubo −, dois membros do PCC ocupavam uma pickup D20 e mais outros dois membros, uma pickup Ranger. O ponto de partida foi na cidade de Itaquaquecetuba, e eles saíram por volta de 5h30 da manhã em direção a Sorocaba.

Pelo rádio, os policiais da Parati comunicavam toda a movimentação do grupo à PM. Uma hora depois, às 6h30, o comboio passou a ser seguido por PMs, que ocupavam carros de passeio. O comboio seguiu até o pedágio da Rodovia José Ermírio de Moraes, conhecida como Castelinho. Ali foi montado um bloqueio com cerca de cem policiais militares. Ao chegar à praça do pedágio, a Parati com os PMs disfarçados passou. Em seguida o pedágio foi fechado e as viaturas da PM cercaram o ônibus e as pickups. Instaurou-se um tiroteio que resultou na morte de todos os membros do PCC e dos informantes infiltrados. Nenhum policial foi ferido.

Quando esse fato foi divulgado, muitos desconfiaram das condições desse confronto. Isso porque, geralmente, quando um criminoso se vê completamente cercado, dificilmente vai para o confronto, porque sabe que o risco de morte é alto. Normalmente, nesse tipo de situação ele se entrega.

Assim como aconteceu em Piracicaba [outra ação do Gradi que resultou em mortes], todas as fitas das câmeras de segurança do pedágio foram apreendidas e sumiram. Apurou-se depois também que esse avião pagador nunca existiu, até porque esse tipo de transporte de valores tinha deixado de circular havia muito tempo.

A ação foi denunciada à Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), porém todos os policiais que estavam no processo foram absolvidos. Reconheceu-se judicialmente a legítima defesa e estrito cumprimento do dever legal, ou seja, a ação foi e é considerada lícita.

Em abril de 2002, devido principalmente à repercussão da ação de Sorocaba, o Gradi foi extinto, ou seja, não gerou a “eficiência” que se esperava, que não era investigar e desbaratar a facção, mas sim eliminar criminosos e vingar policiais abatidos − e se as ações do Gradi foram criminosas ou não, cabe ao Judiciário determinar. É certo também que essas ações do Gradi, midiáticas, acabaram servindo paliativamente de resposta do Estado ao PCC.

No dia seguinte à ação da Castelinho houve uma cerimônia em memória ao ex-governador Mário Covas, falecido cerca de um ano antes, e o sucesso da empreitada foi comemorado como uma grande vitória do governo contra o crime organizado. Ou seja, a história que foi vendida para a mídia foi a deque o governo estava vencendo a guerra contra o crime organizado, que tinham conseguido abater membros ligados à liderança do PCC e que a organização estava combalida e em fuga.

Nada disso realmente estava ocorrendo, uma vez que os líderes da facção estavam seguros nos presídios e os membros assassinados seriam facilmente substituídos, considerando o tamanho e a influência do movimento no sistema prisional. Assim, a efetividade das ações do Gradi foi praticamente nula.” (Christino e Tognolli, 2017)

A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou o caso “Operação Castelinho”, no dia 14 de março de 2024. A denuncia inicial partiu da Fundação Hélio Bicudo, e foi assumida pela Defensoria Pública de São Paulo. No julgamento ocorrido na Costa Rica, a Corte responsabilizou o Estado brasileiro. O relatório da Comissão afirma:

"Considerando as regras aplicáveis sobre o ônus da prova, a Comissão concluiu que o Estado não demonstrou que a operação foi planejada de modo adequado e de acordo com um arcabouço jurídico compatível com o uso da força. Tampouco comprovou que o pessoal que participou da operação estivesse capacitado e treinado conforme os parâmetros exigidos pelo direito internacional. Além disso, a Comissão observou que os indícios que apontam para um uso desproporcional da força não foram suficientemente contestados pelo Estado, que não ofereceu uma justificação adequada" (G1 SP, 14/03/2024)

Sentença. Caso Honorato e outros X Brasil: “O Estado é responsável pela execução extrajudicial de 12 pessoas na “Operação Castelinho” em São Paulo.” No relatório, a Comissão concluiu que o Estado brasileiro foi responsável pela violação dos seguintes direitos: direito à vida, direito à integridade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial.

Bibliografia

Christino, Marcio Sergio e Tognolli, Claudio. Laços de sangue: a história secreta do PCC. São Paulo: Matrix, 2017

G1 SP. 'Caso Castelinho': Corte Interamericana de Direitos Humanos condena o Brasil pelo assassinato de 12 pessoas em ação da PM. São Paulo: Portal G1, 14/03/2024. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/03/14/caso-castelinho-corte-interamericana-de-direitos-humanos-condena-estado-de-sp-pelo-assassinato-de-12-pessoas-em-acao-da-pm.ghtml. Acesso em: 14 mar. 2024.

O governador, a censura e “a raça em extinção”. Disponível em: https://apublica.org/2020/01/o-governador-a-censura-e-a-raca-em-extincao/

Souza, Fátima. PCC, a facção. São Paulo: Record, 2007.